domingo, 11 de setembro de 2011

A casa da Didi

         A casa ainda está de pé. Esteve povoando a infância e a vida de todos da família, e também enfeitiçou a minha. Vejo-a sublime, majestosa e me encontro lá, quando me reporto para aquele tempo tão especial. Ela não é apenas uma casa. É a voz e a alma de todos que nela viveram. Agora está prestes a ser vendida e demolida. Seu último suspiro de vida foi dado há meses, com a morte de seu morador mais forte.Ela não é sombra do que já foi um dia. Está abandonada, velha, suja, realmente prestes a cair pela ação dos cupins que a corroem sem remorso algum. Nela nenhum morador permaneceu. A não ser os pássaros que aproveitam seus últimos momentos de paz na copa da imponente mangueira, que ao lado da casa resistiu a tudo e a todos.
        Eu a conheci desde sempre, pois quando nasci morávamos numa casa de vila do outro lado da rua, em frente ao seu portão. Não era a sua construção em si que me impressionava, mas a sua atmosfera. Era uma atmosfera do passado. Tudo ao seu redor se modificava, mas ela permanecia. Para ela o tempo não passava.
Cresci por ali. Sempre participando dos seus momentos de glória, mas mantive-me imperceptível para todos. Ela era palco das reuniões da grande família. De lá, do seu jardim, que era mais alto do que a calçada, vi o Papa João Paulo II passando. Logo ali, na avenida onde ela se situa. A parada do 7 de setembro muitas vezes por aquela avenida passou. Algumas copas mundiais foram assistidas da sala da grande casa. E as festas de aniversários se espalhavam por suas varandas, onde um carrinho com refrigerantes e tortas desfilava constantemente.
          Às tardes eram passadas na varanda da lateral da entrada, animadas por conversas envolventes. Os temas eram diversos, os mais calorosos eram os casos jocosos contados ao tom de piadas. Nós, crianças, não podíamos ficar escutando as conversas. Logo alguém nos mandava sair. Ou corríamos para a sala da frente através do corredor, ou íamos para o terreno lateral brincar nas árvores.
        Lá, nas árvores, nós fazíamos casas de cordão de pão, guardados pela velha cozinheira, a nossa querida Dona. Ao som dos diversos passarinhos, protegidos pela ordem de jamais tentar prendê-los, brincávamos de floresta, monstros, pega-pega, de fantasia. Tudo naqueles momentos era mágico. Ali o tempo era infinitamente belo e envolvente. Tudo era a mais pura alegria.
        A família naquela época tinha outro significado. Era um conjunto, um todo indivisível. A rotina era a própria vida cheia de encantos e desejos. Havia momentos de tristeza, mas estes não se passavam ali. Eram apenas o contrapeso que deveria existir para tanta felicidade.
        Neste ambiente fantástico viviam quatro pessoas de nossa família. A Bá, e seu querido esposo. Ou seria melhor dizer: o chefe da casa, seu esposo, o honesto Juiz Juarez. Os tempos atuais exigem que se dê este adjetivo aos juízes. E no caso dele é preciso que se diga, pois trabalhou cinqüenta anos, só se aposentou aos setenta, com toda honra e glória, como desembargador e comenda especial. Homem que não possuía bens. Ao que me parece não os necessitava, pois, seu maior tesouro era seu trabalho e sua esposa. Sua diversão, a leitura, a caminhada, à tardinha, pelo centro da cidade com a Bá. Era dedicado ao trabalho e a família, sua esposa, sobrinhos e irmãos que sempre o visitavam. Era feliz.
            A Bá, sua esposa, era pessoa que cultivava a paz dentro de si, incapaz de um ato de maldade. Vivia para o marido e para a família. Amava a leitura e o bom senso. Datilógrafa exímia auxiliava o marido nesta área. Havia trabalhado antes do casamento, entretanto, por notar a tristeza do marido quando saía para o trabalho pediu exoneração do emprego. Aparentemente, nunca se arrependeu de tal ato, pois, o contava como exemplo de bom entendimento e compreensão entre o casal. Realmente fora feliz no casamento, no qual, segundo ela própria dizia, é preciso que os dois renunciem certas coisas em prol do outro para que ambos vivam bem.
         Mas voltemos para os outros membros da família, tão importantes quanto, pois dentro de cada individualidade humana há algo inimitável. A nossa querida Didi, irmã da Bá. Não casou, pois não encontrou o verdadeiro amor em tantos pretendentes que se lhe ofereceram. Recusou-os todos. Quem sabe seu coração amasse platonicamente algum moço secretamente e portanto não o podia entregar a mais ninguém. Certa vez contou que havia se interessado por um primo. Entretanto, a mãe deste achava-a muito magrinha, fraquinha e que portanto o filho não deveria envolver-se com uma moça que logo morreria. As mães podem se enganar. Didi só morreu aos cem anos, dois meses e quinze dias. Foi a última filha de seus pais a morrer. Sobreviveu a tudo e a todos. E foi lúcida, com toda a sua memória e sentimentos. Talvez ainda se recordando do primo e das palavras ditas pela sua mãe: “Magrinha, fraquinha, moça que logo morreria!”.
         Didi dedicou sua vida à família. Primeiro aos pais, que acompanhou com amor e dedicação até a morte. Depois à irmã solteira, a Bá, que viria a se casar, mas, que continuaria morando junto a ela, na mesma casa de seus pais. Ajudou a criar muitos sobrinhos, sempre com muita dedicação. Todavia, foi a neta querida de sua mãe, sua sobrinha Edwa, que ela considerou até a morte como uma filha. Nós, Christiane, Waleska e Alfredo, filhos da Edwa, éramos para a Didi, seus netos. Finalizemos então a lista de moradores da casa, a quarta moradora não era da família, mas era como se fosse. Era a cozinheira, a nossa querida Dona. Nem sei quanto tempo ela trabalhou, viveu com a família. Só sei que quando nasci, ela já estava lá. E sei também que fez parte da infância da minha mãe Edwa. Morreu quando eu era pequena, oito ou nove anos, em 1978 ou 79, mas jamais me esqueci dela. Não sabia ler. Muitas vezes tentei ensinar-lhe. Ela ria de forma gostosa e inocente das minhas tentativas. Eu a repreendia, ficava brava dizendo que assim ela não iria aprender nunca. Ela continuava a rir. Lembro-me que ela adoeceu e logo morreu. Antes de ir ao hospital fui visitá-la em seu quarto. Ela estava deitada na sua rede, no quanto de sempre. Olhou-me tristemente e sorriu. Alguém estava comigo e me levou logo. Não sei quem era, não me recordo. Nunca mais a vi. Dona não voltou. Foi a primeira vez que vi a cara da morte. A ausência dela ainda é presente em minhas lembranças. Nós jamais esquecemos aqueles que se vão, se realmente o amamos. Vi suas coisas serem retiradas da casa uma a uma, mas não consegui tirá-la da lembrança.
         Toda família tem uma casa matriz, uma casa para onde ir nos momentos de conflito e de alegria. Para nossa família, esta casa era chamada por nós de “a casa da Didi”.


 Waleska Montenegro em 11/09/2011

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